sexta-feira, 18 de setembro de 2015

O que cabe nas palavras



Todo afastamento cabe na palavra distância e toda distância cabe na palavra saudade e toda saudade cabe na história da gente. Nem sempre consegui voltar aos meus escombros e reatar o fio daquela meada de tecer destinos que o vento levou quando se impôs sobre meus voos. E toda vez que meu pouso se deu em outras paragens, muito longe do ninho, essas palavras estiveram comigo. Mas nem toda saudade cabe na palavra tristeza e nem toda tristeza cabe na história da gente. Há sempre um resto de beleza guardado na memória. Um cheiro, um gosto, uma música, um verso que me devolve e me resgata.  E o meu coração se aquieta na luz do sol sobre o rio.


M.Cendón


foto: Constantine Manos (1962)

O vazio ao lado


Mortas as palavras, garganta seca, restava esperar que a escuridão os conduzisse ao sono. Era quase verão e a desesperança tinha atravessado três estações para chegar ao limite do cansaço. E sendo a realidade das faces comprometedora e demasiado fria, deram-se as costas para o equilíbrio da estranha balança que os sustentava. Já não eram senão o vulto opaco que o tempo tatuara na memória; um copo pela boca à espera da última gota. E o silêncio, a pesar sobre os pesares.
Mas naquela noite, instante suspenso de uma tormenta, algo incomum atravessou os anteparos. Desvelada, a dormência se fez movimento e em busca de trégua, navegou os lençóis. O coração disparou, faltou o ar, sumiu o chão. E como náufragos, boiaram sob o céu constelado em busca de um único gesto que os salvasse. As mãos, até então recolhidas, deslizaram. Pétala de delicada textura, a pele cedeu aos afagos. E o vazio ao lado se dissipou. 


M.Cendón 


foto: Marga Cendón 

Insônia


A noite ultrapassava a primeira metade e logo viriam os ruídos da rua, o vai e vem das calçadas, a cidade retomada em suas cores habituais. Encolhida nas cobertas esperava pelo sono. Nada! Deteve-se então aos ponteiros do despertador na mesinha de cabeceira: tudo se modificava ao passo das horas menos aquela circularidade que os mantinha prisioneiros desde a invenção dos relógios. Pensou nas próprias redomas. Viu-se andando, andando e voltando ao mesmo ponto. Acariciava saudades, remoía memórias... Mas não tinha a perenidade dos ponteiros. Eles seguravam-se ao tempo... Ela? Escorria pelo furo dos instantes. 


M.Cendón 


foto: Maurício Cendón Avila