terça-feira, 21 de junho de 2016

Vende-se

Forcei a maçaneta enferrujada e o corredor estendeu-se à minha frente, com suas portas entreabertas. Passei os olhos pelos cômodos. Das frestas nas janelas, a luz da tarde revelava sobrepostas camadas de tinta no descascado das paredes; colchas de retalhos desbotadas, bonecas de louça em cadeiras de palha, jarros sem água, vasos sem plantas. Há muito eu tinha partido e os que ficaram, viviam agora do outro lado, reclusos em sépia nos porta-retratos do aparador da sala. Seus semblantes, mudos convites ao desenterro.

Vieram-me então os aromas, os gostos, as vozes, as faces. Lá fora, o branco dos lençóis ainda balançava em varais enfileirados, esconderijo de cantigas e suas rodas, sob o azul que esquecera de entardecer. Tudo à minha espera... A casa repleta, as conversas paralelas em torno da mesa, a leveza do silêncio na hora da sesta.  Um tempo em que dizer-se feliz era dispensável. E não o ser, impossível.  

O eco de meus próprios passos nas tábuas corridas do assoalho trouxe-me de volta aos escombros. Os anos de afastamento me haviam modificado e o passado, agora, resumia-se a uma cena em preto e branco cheirando a mofo, umidade, abandono. Não, eu não queria a mobília, as cortinas, os cristais. Nada além das lembranças que já estavam comigo.

Dei meia-volta, bati a porta e entreguei a chave ao corretor. 


M.Cendón


foto: Marga Cendón

Atrás da Cortina

Ao ouvir as portas de um carro batendo àquela hora da noite, andou até a janela e arredou a cortina. Viu um Aero Willis escuro estacionado sob o poste do outro lado da rua e três homens entrando na casa da frente. Minutos depois, saíram arrastando um corpo, jogaram no banco traseiro e arrancaram em disparada.

Se fosse em outros tempos, ele os teria seguido. Mas agora, a Gota o impedia de movimentos bruscos, os joelhos travavam a cada passo mais largo, as mãos tremelicavam. E a visão, por conta daquela catarata inoperável do olho esquerdo, também não ajudava muito. Além do mais, já não tinha carro.

Por ordens médicas, após o segundo derrame, fora obrigado a se desfazer do Austin A40 Devon verde-claro, comprado de segunda mão. De tão bem cuidado, passava fácil por zero quilômetro. Vez ou outra lhe vinham os detalhes cromados que lustrava, todo dia, para conservar o brilho; os passeios pela Avenida Rio Branco fazendo a volta no Largo da Ferroviária, bem devagarinho, até o filho pegar no sono. Coisas roubadas pela idade que a memória insistia em preservar. Do homem ativo, só o ouvido e a lucidez continuavam os mesmos, contrariando a maioria dos que tinham chegado àquela altura da vida. No mais, apenas um ser insone e lento, aprisionado num corpo dolorido.

Mas não era hora de pensar em suas mazelas. Deixou as lamentações de lado e concentrou-se no cara jogado no banco de trás, feito um saco de lixo.

Fazia muito que trocara a noite pelo dia e nas últimas semanas, com a mania de cuidar o movimento da rua, vinha presenciando fatos estranhos.

Na segunda-feira, pouco depois da meia noite, seu vizinho foi arrancado de casa aos trambolhões, por dois brutamontes, e forçado a entrar numa viatura parada na esquina. Até agora ele não tinha voltado. E na madrugada de quarta, em uma de suas rondas pela janela, surpreendeu o baixinho que morava no térreo de um sobrado, saindo às pressas. Embarcou numa Rural com sua mãe entrevada e sumiu na serração. Sujeito esquisito, o tal baixinho. De pouca conversa, óculos fundo-de-garrafa, alguns fios de cabelo tramados sobre a careca e uma perna atrofiada pela poliomielite. Mesmo à distância, uma figura inconfundível. Na manhã seguinte o sobrado que ele vivia há anos com a mãe, e onde também funcionava, no andar de cima, uma pensão de estudantes, foi invadido e revistado.

Definitivamente, algo muito suspeito andava acontecendo na Rua do Acampamento. Mas como ele poderia saber?

Desde que as válvulas do rádio grande haviam pifado, estava afastado dos noticiários. Nada de A Voz do Brasil, Repórter Esso, nem ao menos os programas locais que transmitiam, de hora em hora, os fatos mais relevantes do dia. Tinha um radinho portátil, mas estava sem pilhas. Com a vida pela hora da morte, se comprasse as “amarelinhas” não sobraria para os remédios. E já não lia os jornais impressos. Só as manchetes. As outras letras se misturavam como formigas sobre o papel.  

Nos últimos tempos, toda a informação a que tinha acesso, chegava através de Aquiles, o único amigo que o visitava. Mas Aquiles andava confuso e já meio esclerosado, trocava os nomes, os modelos dos carros, os horários. E principalmente as vítimas dos misteriosos desaparecimentos. Fosse ele o homem de antes, teria descido, feito perguntas, se inteirado de tudo sem depender de outro velho.

Quando a rua silenciou, soltou o pano gasto da cortina e, resmungando consigo mesmo, arrastou-se pela trilha dos próprios chinelos na cera grudenta do assoalho. Tateando a cama, recostou o corpo enfraquecido pelas dores. E de olhos fixos nas manchas difusas que as luzes dos postes refletiam no teto, aguardou o próximo barulho.   

M.Cendón



foto: Marga Cendón