Federico
jogara-se do décimo terceiro andar e não encontramos o corpo. Aos berros,
Luciana me acusava de ter fumado na janela e deixado aberta de propósito. Em
defesa, argumentei que há três meses não tocava em um cigarro. Mesmo assim, fui
condenado ao inferno. Tirando o descabimento da acusação, posto que eu seria
incapaz de ato tão sórdido, aquele suicídio não deixava de ser uma bênção.
Federico e eu nos detestamos desde o primeiro instante. Mas, o misterioso sumiço do gato dela, não
foi a causa de nossa ruptura, apenas a gota d’água.
Descaso,
xingamentos e silêncios prolongados, moviam, há anos, aquele casamento. E o
medo de viver fora dele anulava qualquer possibilidade de fuga. Tudo o mais que
tivesse existido entre nós estava suplantado pela intolerância. Tanto, que nem
lembrava o último gesto de carinho. E, talvez pelo vício do desprezo mútuo,
seguimos ocupando a mesma cama. Até o fim. Enquanto eu cruzava os braços sob a
nuca e vasculhava o teto em busca de uma brecha, no travesseiro ao lado ela
ressonava. Sei que fingia. Ninguém consegue dormir à beira do caos.
Alguns
dias após o episódio do gato, dei com dois estranhos carregando um caminhão de
mudança em frente ao prédio. Reconheci a cama.
Sentindo
extremo alívio, sobretudo, por não ter sido minha a decisão, subi ao
apartamento. Andei pelos cômodos. Pareciam enormes. Na sala, além do sofá puído
e meu birô abarrotado de livros e papéis, quase nada. Linhas de poeira
guardavam o espaço vazio dos quadros, retirados das paredes. E livre das
cortinas, o retângulo da janela surgia como um cartão postal da Avenida Ceará.
A mesma por onde Federico desaparecera sem deixar rastros.
Mais
que um ponto final, Luciana concedera um salvo-conduto ao que restava de nossas
vidas. E eu a invejei pela coragem.
Quando
o porteiro cruzou o hall com a última de suas malas, ela entrou no elevador sem
se despedir. Pálida e de olhos borrados, lembrava meus esboços a carvão sobre
canson, rabiscados em horas de insônia. Nunca consegui pintar seu rosto. Quem
sabe agora, sua ausência me devolvesse o entusiasmo.
M.Cendón
M.Cendón
(foto: Marga Cendón) |