segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Antes do Fim

Federico jogara-se do décimo terceiro andar e não encontramos o corpo. Aos berros, Luciana me acusava de ter fumado na janela e deixado aberta de propósito. Em defesa, argumentei que há três meses não tocava em um cigarro. Mesmo assim, fui condenado ao inferno. Tirando o descabimento da acusação, posto que eu seria incapaz de ato tão sórdido, aquele suicídio não deixava de ser uma bênção. Federico e eu nos detestamos desde o primeiro instante.  Mas, o misterioso sumiço do gato dela, não foi a causa de nossa ruptura, apenas a gota d’água.

Descaso, xingamentos e silêncios prolongados, moviam, há anos, aquele casamento. E o medo de viver fora dele anulava qualquer possibilidade de fuga. Tudo o mais que tivesse existido entre nós estava suplantado pela intolerância. Tanto, que nem lembrava o último gesto de carinho. E, talvez pelo vício do desprezo mútuo, seguimos ocupando a mesma cama. Até o fim. Enquanto eu cruzava os braços sob a nuca e vasculhava o teto em busca de uma brecha, no travesseiro ao lado ela ressonava. Sei que fingia. Ninguém consegue dormir à beira do caos. 

Alguns dias após o episódio do gato, dei com dois estranhos carregando um caminhão de mudança em frente ao prédio. Reconheci a cama.

Sentindo extremo alívio, sobretudo, por não ter sido minha a decisão, subi ao apartamento. Andei pelos cômodos. Pareciam enormes. Na sala, além do sofá puído e meu birô abarrotado de livros e papéis, quase nada. Linhas de poeira guardavam o espaço vazio dos quadros, retirados das paredes. E livre das cortinas, o retângulo da janela surgia como um cartão postal da Avenida Ceará. A mesma por onde Federico desaparecera sem deixar rastros.

Mais que um ponto final, Luciana concedera um salvo-conduto ao que restava de nossas vidas. E eu a invejei pela coragem.


Quando o porteiro cruzou o hall com a última de suas malas, ela entrou no elevador sem se despedir. Pálida e de olhos borrados, lembrava meus esboços a carvão sobre canson, rabiscados em horas de insônia. Nunca consegui pintar seu rosto. Quem sabe agora, sua ausência me devolvesse o entusiasmo.  


M.Cendón 


(foto: Marga Cendón)