quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Ninguém escapa

Muito gentil a mocinha da loja perguntou: “a senhora está procurando alguma coisa especial?” – olhei para os dois lados e para trás. Ninguém. Não tinha engano, “senhora” era comigo. Num primeiro momento pensei em sair e entrar de novo. Depois, em sair e nunca mais voltar. Pensei até em dizer uns desaforos, mas não fiz nada disso. Apenas retribuí o sorriso e, com a voz abafada, respondi: “Só estou dando uma olhadinha, se precisar eu chamo”.  Foi tudo que me ocorreu. Precisava ficar sozinha para recuperar o fôlego e engolir o que acabara de deixar por terra a visão que eu tinha de mim até então. Minhas pernas pesaram, meus braços caíram, e minha imagem encolheu-se diante do enorme espelho da loja. “Senhora”, eu?! Estabeleceu-se ali um impasse e minha identidade corria sério risco de esvair-se pelo ralo das indagações. Imediatamente trouxe à memória situações semelhantes relatadas por amigas e em duas ou três crônicas sobre o mesmo assunto que havia lido tempos atrás. Na ocasião me pareceu um descabimento. Ora, tanto drama por uma bobagem! Sempre achei que tiraria de letra quando chegasse minha vez. Não foi bem assim. Aquilo mexeu com algo para o qual eu ainda não estava preparada e ouvir dirigido a mim foi bizarro. Sai disfarçadamente sem comprar nada e fiquei andando pelas ruas para assimilar o trem que acabara de me atropelar conduzido por uma guria que sequer tinha noção do que causara. Mais tarde e já mais calma, entrei num café, chamei o garçom e, antes que ele abrisse a boca pra me chamar por aquela palavra sórdida, fui logo pedindo: “moço, por favor, um carioca duplo”. De moço ele não tinha nada. E, juro, minha vontade foi de pedir uma vodca. 


(publicado no Jornal Momento de Uruguaiana) 

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Quem é você?

Fazendo umas (des)arrumações em meu atelier por conta da mudança de endereço, fui descobrindo tesouros guardados quase a sete chaves. Trabalhei lá por doze anos e juntei todo o tipo de tralha que se possa imaginar. Entre outras coisas, caixas abarrotadas de poemas escritos à mão em bloquinhos de propaganda de laboratório, tão ingênuos e derramados que lendo agora dá vontade de rir e outros, até bem bonitinhos, que pretendo organizar para quem sabe um próximo livro; textos sem pé nem cabeça escritos em momentos de raiva ou alegria; esboços e desenhos de futuras-passadas pinturas que acabaram engavetados; aquarelas de flor, passarinhos e paisagens. Um mundo feito de papel e tinta do qual eu havia esquecido. Mas isso foi só o começo. Veio depois uma revista geral pelos quatro cômodos até chegar à estante de livros presenteados por amigos ao longo dos anos e que há muito eu não tocava. O pó provocou uma série de espirros. Fiquei fanha e meio surda, mas não desisti. Comecei a folhear um por um lendo as dedicatórias, revendo de memória os rostos e lembrando com uma saudade boa a época em que estivemos ligados. De repente me deparei com o “Solte os Cachorros” da Adélia Prado e fui logo ver. Na segunda página dizia o seguinte:

“Marga!
Solte os cachorros quando alguém ousar te privar do que te cabe por direito: a felicidade!
Com carinho

Sônia.

Santa Maria, 19/05/81”

Um belo livro, uma bela dedicatória... Só havia um probleminha... Quem era Sônia? Com esse nome só conheço uma prima de outra cidade e, tenho certeza, nunca me presenteou com um livro. Mas como assim? Uma criatura que me deseja a felicidade como direito, me dá um livro da Adélia e eu apago? Coloquei-o na bolsa, fechei a porta e fui pra casa tentando encontrar um rosto que encaixasse naquele nome. Li e reli e nada! Nenhum fio me ligava à Sônia. Pensei então que o tempo é verdadeiramente uma armadilha que nos ronda. E sentindo remorso pelo esquecimento, escrevi logo abaixo das palavras dela:

Sônia querida!

Seja você quem for e esteja onde estiver, saiba que soltei os cachorros em todos que ousaram me privar deste ou de qualquer direito. E saiba que continuo fazendo isso hoje e o farei sempre que ousarem. E mesmo que jamais eu venha a lembrar do seu rosto, alguma diferença você deve ter feito na minha vida.

Com carinho

M.

06/10/14

(publicado no jornal Momento de Uruguaiana)