Ajeitei
os travesseiros e me recostei na cama de Laura. Seu perfume, ainda nos lençóis.
Passei os olhos pelo quarto. Roupas enfileiradas em cabides, sapatos arrumados
lado a lado, livros e outros objetos em nichos rasos, cobertos por uma fina
camada de pó. Tudo como havia deixado. Porém, naquela noite, minha furtiva
visita às suas coisas não foi apenas para aliviar a falta que me fazia. Eu
buscava pelas cartas escritas e não enviadas, hábito que ela cultivava desde
antes do casamento. Uma espécie de diário, em folhas envelopadas. E, embora a
curiosidade me assaltasse, jamais indaguei-lhe sobre isso. Seus prolongados
silêncios eram portas que se fechavam entre nós e me excluíam de parte da sua
vida. Seus mistérios viraram minha obsessão.
Vasculhei
cada centímetro. Revirei móveis, caixas, malas e nada encontrei. Talvez
Ambrósia, sua acompanhante e confidente, as tivesse levado dali. A antipatia
que eu nutria por Ambrósia era tão evidente quanto a devoção de cão-de-guarda
que ela dedicava à minha esposa. Seu olhar enigmático me irritava e só a aturava
por extrema necessidade. A próxima revista seria em seus aposentos.
Quase
amanhecia. Sentia-me exausto. Precisava de um café. No corredor, em direção à
cozinha, dei com a cômoda que ela trouxera da estância do Sul, herança de
família e parte do mobiliário de seu antigo quarto de solteira. Esvaziei-a. Fui
batendo com o nó dos dedos em cada gaveta até escutar o ruído oco que me
reacendeu a esperança. Bastou soltar a presilha de metal em uma das laterais e
o fundo falso cedeu.
Não
há como descrever a impressão do exato instante em que centenas de envelopes
pardos, sem lacre ou destinatário, choveram sobre meus pés. Algo muito perto da
ânsia que antecede os encontros.
Veio-me
então sua imagem naquela tarde, em minha última visita. Ela oscilava para
frente e para trás, feito um pêndulo a hipnotizar-me. O corpo descaído, os
cachos avermelhados em completo desalinho, nenhuma maquiagem. Seus olhos
verde-oliva me transpassavam como se eu fosse transparente. E o que buscavam,
ficava muito além de mim. Mais uma vez senti o peso do descaso. Saí do
sanatório às pressas, sem me despedir. Raiva, dúvida, sentimento de vingança
guiaram-me de volta para casa.
Agora,
ali estava ela. No chão. Traduzida por si mesma em palavras. Era o fim da
espera em decifrá-la e do apêndice em que me havia transformado. Seus segredos,
tão bem guardados, ao meu alcance. E não havia nada que ela ou Ambrósia
pudessem fazer.
Apanhei
uma delas, desdobrei e iniciei minha jornada:
Rio
Branco, 24 de fevereiro de 1978
Aqui,
as tardes são úmidas, as noites abafadas, os silêncios cada vez mais longos.
Abomino as conversas banais à hora da mesa, os sorrisos cordiais, a aparente
tranquilidade que move nossos dias. Esse cerco de atenções me fragiliza. Os
fantasmas, nos quatro cantos da casa, cobram o afeto que não dou. Longe do meu
lugar, tenho morado nas janelas. E deste ponto, as montanhas me parecem azuis.
Além delas, os rios que não vejo e as aves de plumagem estranha que nunca voam
para cá. O reflexo do que me tornei ocupa a vidraça e só então compreendo o
olhar por trás das jaulas. Não é mansidão. É desesperança. Fingir alegria? Impossível.
A tristeza é um sentimento indisfarçável.
Ergui
a cabeça. No espelho da cômoda, um estranho me observava. Apesar da pouca luz
no corredor, reconheci seus traços. Aquele ser opaco que me envergonhava, e do
qual sempre quis me livrar, acabava de assumir a face de um inescrupuloso
invasor, prestes a profanar um relicário.
Devolvi
a folha de papel ao envelope e todas as outras cartas ao fundo falso da gaveta.
Intactas. E não foi um gesto de nobreza. Antes, pura covardia.