quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Entre mil outros


Naquele dia, algo diferente moveu-se na contraluz do fim da tarde, hora em que os fantasmas, misteriosamente, tomavam conta da varanda. Não era a brisa de maio sacudindo os eucaliptos que margeavam o caminho, nem sonho, miragem ou fruto do delírio de proximidade que há muito lhe roubara o sono. Apurou a vista em direção ao vulto e de longe reconheceu o passo. Cansada das lições de espera impostas pelo silêncio, correu ao seu encontro. Cerrou as pálpebras e, como cega, tocou-lhe a face com a palma das lembranças. A barba por fazer e os sulcos que o tempo havia desenhado não confundiram as pontas dos seus dedos. Ela o reconheceria, entre mil outros, ainda que mil anos os tivessem separado.


M.Cendón 

foto: Marga Cendón 

Feito pássaros


Dobrou com o cuidado de quem manuseia uma peça de cambraia francesa e trancou, na última gaveta da cômoda, as palavras não ditas. Nada havia para ser dividido com o olhar avesso do outro, embora quisesse ter acreditado que sim. Sabia agora o que negara pelo desejo de sentir-se parte de algo que só existiu dentro dela, em sua visão distorcida sobre as coisas do amor. Guardou a chave em lugar seguro. Talvez, em outro tempo, servissem a outra pessoa. Mas se as dissesse antes da hora, se perderiam como pássaros tristes em tardes de temporal. 


M.Cendón  


foto: Marga Cendón