Era um pobre
diabo a quem a vida, sendo mais salgada que doce, transformara numa espécie de
tapera humana. Calado, barba crescida, olhar pregado no vazio. De dia, a lida
dissimulava as amarguras e o entretinha enquanto o sol durasse. À tardinha,
passo encurtado, preparava o mate, ligava o rádio; esperava a hora da Ave
Maria. Depois, resmungando com fantasmas, afogava a saudade num liso de canha.
Assim vivia João, um coitado que o acaso abortara naquelas paragens. Filho,
não se sabe de quem. Diziam os mais antigos ser cria enjeitada do patrão, mas
ao certo não se afirmava. Quando a mãe morreu ninguém mexeu com ele, deixaram que
ficasse. E passado os anos, já homem feito, continuava por lá. Era de
confiança, braço direito do dono das terras.
Quase nunca se
afastava, mas aos domingos, metido na única roupa de passeio, tomava o rumo da
vila com o propósito de encher a cara. Foi numa dessas que conheceu Anita. “Uma
belezura”, comentava a rapaziada. No inicio, João não encarava. Só espiava de
rabo de olho. Mas quando bem reparou, nunca mais foi o mesmo.
Ela, flor de
bonita, se atirava. Ele imaginava coisas... A boca de Anita contorcendo-se em
sorrisos, as mãos inquietas, a pele clarinha. Peitos estourando os botõezinhos
rosa da blusa; coxas adivinhadas sob o fino pano da saia. Entre um e outro
trago, fazia planos, traçava caminhos que o levassem a ela. Sonhava-a em pelo
no esconderijo do arroio. Ainda havia de toca-la nem que só por um instante.
Porém, a bandida tinha dono e vivia pendurada ao braço do dito cujo. João não
se importava. A razão era uma via secundária pela qual sua paixão não transitava. E por ela, sem pestanejar, arriscaria de bom grado o pescoço.
Quando o domingo
se ia, João voltava.
–“Um dia, Anita, tu não me escapa” – dizia enrolando a língua enquanto acariciava com mãos grosseiras o lombo da égua que o levava pra casa.
–“Um dia, Anita, tu não me escapa” – dizia enrolando a língua enquanto acariciava com mãos grosseiras o lombo da égua que o levava pra casa.
Numa tarde,
antes da sesta, tomou sumiço lá pras bandas do rio onde foi visto pela última
vez. “Terá se afogado?” – se perguntavam fazendo alarde e revirando o galpão em
busca de alguma pista. A roupa de passeio, o chapéu, os arreios; até o
escapulário presenteado pela mãe que desde guri não tirava. Tudo lá do mesmo
jeito, feito quem tivesse saído correndo pra fazer um mandado. Enquanto isso, o
outro, desesperado, procurava por Anita quase pedindo socorro. Ninguém sabia
parte. Tampouco ligaram os fatos.
Passado dois ou
três dias, João retomou a lida como se nada tivesse acontecido. Sem mais
delongas sobre o assunto, disse apenas se tratar de pescaria. E no domingo
seguinte, com o mais encantador dos sorrisos, Anita passeava pela vila
pendurada ao marido.
foto: Marga Cendón
(conto classificado para a II Coletânea de Contos da Feira do Livro de Santo Ângelo, RS - 2014)