terça-feira, 16 de setembro de 2014

Um João quase ninguém




Era um pobre diabo a quem a vida, sendo mais salgada que doce, transformara numa espécie de tapera humana. Calado, barba crescida, olhar pregado no vazio. De dia, a lida dissimulava as amarguras e o entretinha enquanto o sol durasse. À tardinha, passo encurtado, preparava o mate, ligava o rádio; esperava a hora da Ave Maria. Depois, resmungando com fantasmas, afogava a saudade num liso de canha. Assim vivia João, um coitado que o acaso abortara naquelas paragens. Filho, não se sabe de quem. Diziam os mais antigos ser cria enjeitada do patrão, mas ao certo não se afirmava. Quando a mãe morreu ninguém mexeu com ele, deixaram que ficasse. E passado os anos, já homem feito, continuava por lá. Era de confiança, braço direito do dono das terras.
Quase nunca se afastava, mas aos domingos, metido na única roupa de passeio, tomava o rumo da vila com o propósito de encher a cara. Foi numa dessas que conheceu Anita. “Uma belezura”, comentava a rapaziada. No inicio, João não encarava. Só espiava de rabo de olho. Mas quando bem reparou, nunca mais foi o mesmo.
Ela, flor de bonita, se atirava. Ele imaginava coisas... A boca de Anita contorcendo-se em sorrisos, as mãos inquietas, a pele clarinha. Peitos estourando os botõezinhos rosa da blusa; coxas adivinhadas sob o fino pano da saia. Entre um e outro trago, fazia planos, traçava caminhos que o levassem a ela. Sonhava-a em pelo no esconderijo do arroio. Ainda havia de toca-la nem que só por um instante. Porém, a bandida tinha dono e vivia pendurada ao braço do dito cujo. João não se importava. A razão era uma via secundária pela qual sua paixão não transitava. E por ela, sem pestanejar, arriscaria de bom grado o pescoço. 
Quando o domingo se ia, João voltava. 
“Um dia, Anita, tu não me escapa” – dizia enrolando a língua enquanto acariciava com mãos grosseiras o lombo da égua que o levava pra casa.
Numa tarde, antes da sesta, tomou sumiço lá pras bandas do rio onde foi visto pela última vez. “Terá se afogado?” – se perguntavam fazendo alarde e revirando o galpão em busca de alguma pista. A roupa de passeio, o chapéu, os arreios; até o escapulário presenteado pela mãe que desde guri não tirava. Tudo lá do mesmo jeito, feito quem tivesse saído correndo pra fazer um mandado. Enquanto isso, o outro, desesperado, procurava por Anita quase pedindo socorro. Ninguém sabia parte. Tampouco ligaram os fatos. 
Passado dois ou três dias, João retomou a lida como se nada tivesse acontecido. Sem mais delongas sobre o assunto, disse apenas se tratar de pescaria. E no domingo seguinte, com o mais encantador dos sorrisos, Anita passeava pela vila pendurada ao marido.


foto: Marga Cendón

(conto classificado para a II Coletânea de Contos da Feira do Livro de Santo Ângelo, RS - 2014) 

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Cidade Baixa

Tirada do sono pelo sino da igreja do bairro que, insistente, chama seus fiéis, pulo da cama e abro a janela. Lá em baixo, patinadores sincronizados, parecendo patinhos coloridos com seus estranhos capacetes, ocupam parte da rua ainda deserta dos barulhentos automóveis. Do lado de lá, sob a marquise, um homem dorme na cama improvisada com pedaços de espuma ensopados pela chuva da noite anterior. Amarrado ao seu pé, um carrinho de supermercado contendo seus pertences faz a vez de armário. No edifício em frente um casal de namorados se despede com um longo beijo, o que me leva a imaginar os inesquecíveis momentos que tiveram. A banca da esquina da Rua Lima e Silva com a Sarmento Leite escancara suas portas repletas de chamativas manchetes. Duas pessoas compram jornais. No mais, tudo é tranquilidade. A Cidade Baixa ainda dorme depois do agito que balançou o sábado. Surpreendentemente ensolarado, o domingo convida a um passeio, mas a manhã é fria e preguiçosa e tudo que me ocorre, agora que os sinos silenciaram, é voltar pra cama, tapar a cabeça e dormir mais um pouco. Até que o chamado para a missa das dez me desperte outra vez.


(texto para a coluna semanal do jornal Momento de Uruguaiana em 10/09/2014)