sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Avesso


Ser vento
chuva
temporal
ser sal e não sentir
ser amor
sem escorrer o mel
ser o fel da flor 


M.Cendón 


foto: Deniz Senyezil (Turquia)

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Revelação


Houve um tempo em que tudo parecia perfeito e podíamos nos dar o luxo de olhar apenas para o próprio umbigo. E isso nos resumia e justificava. Mas quando o mundo desabou à nossa volta, descobrimos outros umbigos precisando do nosso olhar. E desde então nunca mais fomos os mesmos. 

M.Cendón


foto: Marga Cendón

domingo, 18 de outubro de 2015

Déjà vu



O tempo transforma você em saudade. Depois em silêncio. Por último, dormência. Até que uma sensação inexplicável traz você de volta. Num perfume, numa frase ou numa canção antiga. Mas não chega a ser lembrança... Você é o "déjà vu" do outro.



M.Cendón


imagem: page Donne Imperfette

Claridade



Espio pelo vão dos dedos
A luz artificial atravessar o vidro
E violar a essência das coisas
Sem tocar no silêncio.


M.Cendón

imagem: page Donna Imperfette

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Ser pássaro


Um dia, faz tempo, quis ser flor, mas descobriu que não levava jeito pra isso - Ficar presa a um canteiro pelo resto da vida? - Faltava-lhe paciência na espera das estações e os perfumes causavam alergia. Foi então que resolveu ser pássaro.  

M.Cendón

foto: Marga Cendón

sábado, 10 de outubro de 2015

Amanhã... Sem falta

Todo dia, quando descia do ônibus, ele a observava de longe.  Ela atrás do balcão, lenço no cabelo, boca pintada, mãos cobertas de anéis e pulseiras e o sorriso de orelha a orelha que não saía da cara. Nem parecia a mesma. Com ar de proprietária, dava ordens às atendentes e depois voltava a folhear uma revista, esquecida de tudo que tinham vivido. Era uma Ingrata! Como podia tê-lo trocado pelo turco do armarinho? Logo ele que em todos aqueles anos a cobrira de dengos e trabalhara duro pra manter seus luxos. Contava os trocados para flores em datas especiais, economizava no cigarro para leva-la ao cinema, bancava jantar no bar do Bolão uma vez por semana, com direito a jarrinha de vinho e taças de vidro, tudo conforme ela gostava. Voltava a pé do trabalho para trazer “diamante negro” com o dinheiro da passagem. Lavava panelas, limpava banheiro, dava de comer aos gatos e depois a amava como a uma rainha.  E nada era o bastante. Emerenciana sempre queria mais.


Quando ela se foi a casa restou vazia e a vida perdeu o sentido. Nem os gatos ficaram. Decidiu então que queria morrer. Pensou em se enforcar, enfiar uma faca no peito, se jogar na frente de um trem, mas desistiu. Como suportaria o sofrimento se algo saísse errado? Tinha que ser um tiro certeiro. Mas de onde tirar uma arma? Se pedisse a alguém, desconfiariam e logo viria a turma do “deixa-disso”. Roubar, não tinha coragem. Deitado sozinho na bagunça da cama tentava achar solução. Estava difícil até para morrer. Estendeu a mão, acariciou o vazio no travesseiro dela e limpando uma lágrima resmungou: “amanhã sem falta eu subo o morro, Emerenciana... Lá, se não vier bala de um lado, é certo que vem do outro”.   

M.Cendón