domingo, 16 de outubro de 2016

Depois da Chuva

Como quem 
despe um xale 
a lua livra-se 
das nuvens 
e surge sobre 
os galhos. 
Cheia de si.

M.Cendón



(foto: Marga Cendón - 15/10/2016 19:41)



segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Antes do Fim

Federico jogara-se do décimo terceiro andar e não encontramos o corpo. Aos berros, Luciana me acusava de ter fumado na janela e deixado aberta de propósito. Em defesa, argumentei que há três meses não tocava em um cigarro. Mesmo assim, fui condenado ao inferno. Tirando o descabimento da acusação, posto que eu seria incapaz de ato tão sórdido, aquele suicídio não deixava de ser uma bênção. Federico e eu nos detestamos desde o primeiro instante.  Mas, o misterioso sumiço do gato dela, não foi a causa de nossa ruptura, apenas a gota d’água.

Descaso, xingamentos e silêncios prolongados, moviam, há anos, aquele casamento. E o medo de viver fora dele anulava qualquer possibilidade de fuga. Tudo o mais que tivesse existido entre nós estava suplantado pela intolerância. Tanto, que nem lembrava o último gesto de carinho. E, talvez pelo vício do desprezo mútuo, seguimos ocupando a mesma cama. Até o fim. Enquanto eu cruzava os braços sob a nuca e vasculhava o teto em busca de uma brecha, no travesseiro ao lado ela ressonava. Sei que fingia. Ninguém consegue dormir à beira do caos. 

Alguns dias após o episódio do gato, dei com dois estranhos carregando um caminhão de mudança em frente ao prédio. Reconheci a cama.

Sentindo extremo alívio, sobretudo, por não ter sido minha a decisão, subi ao apartamento. Andei pelos cômodos. Pareciam enormes. Na sala, além do sofá puído e meu birô abarrotado de livros e papéis, quase nada. Linhas de poeira guardavam o espaço vazio dos quadros, retirados das paredes. E livre das cortinas, o retângulo da janela surgia como um cartão postal da Avenida Ceará. A mesma por onde Federico desaparecera sem deixar rastros.

Mais que um ponto final, Luciana concedera um salvo-conduto ao que restava de nossas vidas. E eu a invejei pela coragem.


Quando o porteiro cruzou o hall com a última de suas malas, ela entrou no elevador sem se despedir. Pálida e de olhos borrados, lembrava meus esboços a carvão sobre canson, rabiscados em horas de insônia. Nunca consegui pintar seu rosto. Quem sabe agora, sua ausência me devolvesse o entusiasmo.  


M.Cendón 


(foto: Marga Cendón) 

domingo, 11 de setembro de 2016

Um Poema

Condenada
À submissão
Das horas
Moldo-me aos
Segredos
Confessáveis
Da aurora
Volto a ter
Pernas e braços
E me despeço
Desse pássaro
Que já não sou. 


M.Cendón 


(foto: Marga Cendón) 

sábado, 3 de setembro de 2016

Apenas Para o Nosso Bem

Há horas Idalína está sentada na ponta do sofá, tentando tecer um pulôver com as sobras dos novelos de outros invernos. Às vezes, os pontos se desprendem das agulhas e sua expressão se altera, mas logo reassume a concentração. Eu a observo de longe. Se parece comigo nos traços. Olhos puxados, nariz arrebitado, lábios finos. Nem bonita nem feia. Por sorte, não herdou meu temperamento. É dócil, de movimentos leves e sorriso fácil. Mesmo contrariada, aceita o que lhe é imposto sem levantar a voz. Eu uso esses predicados dela a meu favor. Manobro suas vontades. Nada para o seu mal, apenas para o nosso bem.

Quando a vejo assim, em sua habitual serenidade, não consigo evitar as comparações. E nessas horas, o passado vem e me leva de volta ao ponto mais dolorido. Ela não sabe o que atravessei para chegar aqui.

O quartinho dos fundos fedia a salame e fumo de rolo e, vez por outra, um rato atravessava o piso. “Fica-te quieta, ele é menor que tu”, dizia o dono do armazém, um velho que se deitava comigo sobre caixotes de frutas. O peso de seu corpo e o hálito asqueroso tiravam-me o fôlego. As unhas imundas cravadas na minha pele, tatuavam minúsculas luas novas que custavam a cicatrizar. Depois, estendia uma sacola plástica com mantimentos e um saquinho de caramelos coloridos. “Isso é pra ti. Amanhã tem mais”. Eu tinha doze anos. E era parte do escambo entre ele e minha mãe. Ou isso, ou o vazio de nossos estômagos assombrando as madrugadas. 

Ela cresceu longe das ruas e dos homens. Não conhece o barulho da fome. Sua cama perfumada abriga sonhos do tamanho de sua inocência. Tem quase quinze anos. Quer vitrola portátil, vestido de seda cristal, sapatos de verniz e gorgorão. Não pede. Eu sei por que ouço conversa entre ela e as amigas que frequentam nossa casa. Ficam folheando revistas de moda, fazendo planos.

Na sua idade, minha mãe já havia partido. Vieram então as ruas do centro. Becos enfestados de baratas, lixo azedo; banheiros que eu limpava em bares mal frequentados. Quando voltava, um colchão embolorado me recebia de braços abertos. Não havia espaço para mais nada, além de um pedaço de pão e um banho que me tirasse o cheiro de esgoto. Luxo só me veio à cabeça muito tempo depois.

Hoje, deito-me sobre lençóis de percal imaculadamente brancos e o futuro de Idalína já não me tira o sono. Por minha conta, tracei seu destino. Ela nem desconfia.

Pressinto que desta vez me falte sua maleabilidade e a ruptura entre nós seja inevitável. Estou sem saída. Ela, sem escolha. E diante disso, me preparo para perdê-la. No entanto, não pretendo voltar atrás em minha decisão. Nenhum rato, por menor que seja, vai cruzar seu caminho. E a certeza de seu amparo me tranquiliza.


Agora, devo apressar os preparativos, checar as listas, encomendar trajes à altura. Afinal, não é uma simples festa de quinze anos, mas o dia de seu casamento com o senhor Anízio, homem de respeito, em cujas mãos deposito sua vida. 


M.Cendón 

foto: Marga Cendón

Depois do Temporal

“Essa é das brabas”, resmungava a tia solteirona. “É São Pedro arrastando cadeiras”. Iniciavam então os rituais: espelhos cobertos com toalhas, cruz de sal, nacos de sabão no telhado. E para Santa Bárbara, velas e rezas fervorosas. “Tomara passe logo e não faça muito estrago”.

As nuvens apagavam a tarde e o céu parecia uma imensa chapa sobre o quintal.  Impossível andar lá fora. Pelo desenho dos dedos na vidraça embaçada, espiava o balanço girando sozinho. “É o vento brincando no cinamomo”. Mas o bolinho de chuva e o café coado na hora, compensavam o confinamento.

À volta da mesa, as mulheres falavam ao mesmo tempo. Cheiro de revista nova sendo folheada e passada de mão em mão. Em sua poltrona, o avô cochilava e, vez ou outra, despertava em sobressaltos pela algazarra. Ao lado, o gato lhe fazia companhia. Abria um olho, esticava uma pata e voltava a encolher-se.

Depois do temporal, galhos e folhas mortas amontoados em torno da casa, eram varridos com piaçava. O sol ressurgia. E a vida tomava seu rumo como se nada tivesse acontecido. 

Os pingos espaçados na calha da varanda dissipam suas memórias. Olha para o sul. A linha rosa no horizonte é sinal de que o tempo firmou. Abre janelas, descobre espelhos, recolhe o sal. Deixa as velas queimando ao pé da santinha.


Antes de limpar as calçadas, espicha os olhos pela casa. No silêncio da sala, o gato faz companhia ao vazio. 


M.Cendón 


foto: Marga Cendón

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

O Contorno do Abismo

Ajeitei os travesseiros e me recostei na cama de Laura. Seu perfume, ainda nos lençóis. Passei os olhos pelo quarto. Roupas enfileiradas em cabides, sapatos arrumados lado a lado, livros e outros objetos em nichos rasos, cobertos por uma fina camada de pó. Tudo como havia deixado. Porém, naquela noite, minha furtiva visita às suas coisas não foi apenas para aliviar a falta que me fazia. Eu buscava pelas cartas escritas e não enviadas, hábito que ela cultivava desde antes do casamento. Uma espécie de diário, em folhas envelopadas. E, embora a curiosidade me assaltasse, jamais indaguei-lhe sobre isso. Seus prolongados silêncios eram portas que se fechavam entre nós e me excluíam de parte da sua vida. Seus mistérios viraram minha obsessão. 

Vasculhei cada centímetro. Revirei móveis, caixas, malas e nada encontrei. Talvez Ambrósia, sua acompanhante e confidente, as tivesse levado dali. A antipatia que eu nutria por Ambrósia era tão evidente quanto a devoção de cão-de-guarda que ela dedicava à minha esposa. Seu olhar enigmático me irritava e só a aturava por extrema necessidade. A próxima revista seria em seus aposentos.

Quase amanhecia. Sentia-me exausto. Precisava de um café. No corredor, em direção à cozinha, dei com a cômoda que ela trouxera da estância do Sul, herança de família e parte do mobiliário de seu antigo quarto de solteira. Esvaziei-a. Fui batendo com o nó dos dedos em cada gaveta até escutar o ruído oco que me reacendeu a esperança. Bastou soltar a presilha de metal em uma das laterais e o fundo falso cedeu.

Não há como descrever a impressão do exato instante em que centenas de envelopes pardos, sem lacre ou destinatário, choveram sobre meus pés. Algo muito perto da ânsia que antecede os encontros.

Veio-me então sua imagem naquela tarde, em minha última visita. Ela oscilava para frente e para trás, feito um pêndulo a hipnotizar-me. O corpo descaído, os cachos avermelhados em completo desalinho, nenhuma maquiagem. Seus olhos verde-oliva me transpassavam como se eu fosse transparente. E o que buscavam, ficava muito além de mim. Mais uma vez senti o peso do descaso. Saí do sanatório às pressas, sem me despedir. Raiva, dúvida, sentimento de vingança guiaram-me de volta para casa.

Agora, ali estava ela. No chão. Traduzida por si mesma em palavras. Era o fim da espera em decifrá-la e do apêndice em que me havia transformado. Seus segredos, tão bem guardados, ao meu alcance. E não havia nada que ela ou Ambrósia pudessem fazer.

Apanhei uma delas, desdobrei e iniciei minha jornada: 

Rio Branco, 24 de fevereiro de 1978

Aqui, as tardes são úmidas, as noites abafadas, os silêncios cada vez mais longos. Abomino as conversas banais à hora da mesa, os sorrisos cordiais, a aparente tranquilidade que move nossos dias. Esse cerco de atenções me fragiliza. Os fantasmas, nos quatro cantos da casa, cobram o afeto que não dou. Longe do meu lugar, tenho morado nas janelas. E deste ponto, as montanhas me parecem azuis. Além delas, os rios que não vejo e as aves de plumagem estranha que nunca voam para cá. O reflexo do que me tornei ocupa a vidraça e só então compreendo o olhar por trás das jaulas. Não é mansidão. É desesperança. Fingir alegria? Impossível. A tristeza é um sentimento indisfarçável. 


Ergui a cabeça. No espelho da cômoda, um estranho me observava. Apesar da pouca luz no corredor, reconheci seus traços. Aquele ser opaco que me envergonhava, e do qual sempre quis me livrar, acabava de assumir a face de um inescrupuloso invasor, prestes a profanar um relicário.  

Devolvi a folha de papel ao envelope e todas as outras cartas ao fundo falso da gaveta. Intactas. E não foi um gesto de nobreza. Antes, pura covardia.

Eu poderia viver com a dúvida dos sentimentos dela, mas nunca com a certeza de seu desamor.   


M.Cendón

(foto: Marga Cendón)

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Degredo

O vermelho-alaranjado na paisagem sinalizava o final daquele domingo. Afundado na poltrona, sentia-se tomado de uma espécie de tristeza mais aguda que de costume. O dia havia sido difícil. O almoço, enfadonho como sempre: conversas que iam de obras de engenharia até proezas sem graça de filhos adolescentes, passando por pias entupidas, diarreias, dor de ouvido e outros problemas domésticos. Os cunhados e suas esposas perfeitas, os sogros e sua nova casa de praia...

Ele não era engenheiro, não tinha filhos, não ia à praia, tampouco via sentido nas estrondosas risadas após as piadas sem pé nem cabeça contadas à mesa. Nenhuma afinidade os ligava. Tinha pavor daquelas reuniões familiares e da suposta normalidade que ostentavam. Só pensava em ir para casa.

Ao seu lado, distraída, Maria Lúcia folheava um jornal. Olhou-a de canto sem que ela notasse. A sobrancelha direita levemente erguida, concentrada na leitura; a pele clara, os lábios finos, o cabelo um tanto mais curto que antes. Apesar de passados vinte e oito anos e já não ter a mesma exuberância da jovem com quem se casara, ela continuava bonita. Há quanto tempo não a olhava assim? Mas se perguntassem, naquele instante, o que sentia agora por ela, ele não encontraria palavras que se encaixassem. De uns tempos para cá, vinha se fazendo a mesma pergunta. Talvez não houvesse resposta. Ou, quem sabe, a palavra que por si só definisse a mistura de refúgio, alívio e tédio, ainda não tivesse sido inventada.

De repente, Maria Lúcia ergueu os olhos e sorriu. Ele retribuiu. Tomou então a mão dela entre as suas e descansou a cabeça em seu ombro. Aos poucos, a tristeza que o perturbava no fim daquela tarde, deu lugar à mansidão. E recostado nela, viu as ruas passarem apressadas pela janela e as estações do subúrbio ficarem para trás. Logo estariam em casa.  

terça-feira, 21 de junho de 2016

Vende-se

Forcei a maçaneta enferrujada e o corredor estendeu-se à minha frente, com suas portas entreabertas. Passei os olhos pelos cômodos. Das frestas nas janelas, a luz da tarde revelava sobrepostas camadas de tinta no descascado das paredes; colchas de retalhos desbotadas, bonecas de louça em cadeiras de palha, jarros sem água, vasos sem plantas. Há muito eu tinha partido e os que ficaram, viviam agora do outro lado, reclusos em sépia nos porta-retratos do aparador da sala. Seus semblantes, mudos convites ao desenterro.

Vieram-me então os aromas, os gostos, as vozes, as faces. Lá fora, o branco dos lençóis ainda balançava em varais enfileirados, esconderijo de cantigas e suas rodas, sob o azul que esquecera de entardecer. Tudo à minha espera... A casa repleta, as conversas paralelas em torno da mesa, a leveza do silêncio na hora da sesta.  Um tempo em que dizer-se feliz era dispensável. E não o ser, impossível.  

O eco de meus próprios passos nas tábuas corridas do assoalho trouxe-me de volta aos escombros. Os anos de afastamento me haviam modificado e o passado, agora, resumia-se a uma cena em preto e branco cheirando a mofo, umidade, abandono. Não, eu não queria a mobília, as cortinas, os cristais. Nada além das lembranças que já estavam comigo.

Dei meia-volta, bati a porta e entreguei a chave ao corretor. 


M.Cendón


foto: Marga Cendón

Atrás da Cortina

Ao ouvir as portas de um carro batendo àquela hora da noite, andou até a janela e arredou a cortina. Viu um Aero Willis escuro estacionado sob o poste do outro lado da rua e três homens entrando na casa da frente. Minutos depois, saíram arrastando um corpo, jogaram no banco traseiro e arrancaram em disparada.

Se fosse em outros tempos, ele os teria seguido. Mas agora, a Gota o impedia de movimentos bruscos, os joelhos travavam a cada passo mais largo, as mãos tremelicavam. E a visão, por conta daquela catarata inoperável do olho esquerdo, também não ajudava muito. Além do mais, já não tinha carro.

Por ordens médicas, após o segundo derrame, fora obrigado a se desfazer do Austin A40 Devon verde-claro, comprado de segunda mão. De tão bem cuidado, passava fácil por zero quilômetro. Vez ou outra lhe vinham os detalhes cromados que lustrava, todo dia, para conservar o brilho; os passeios pela Avenida Rio Branco fazendo a volta no Largo da Ferroviária, bem devagarinho, até o filho pegar no sono. Coisas roubadas pela idade que a memória insistia em preservar. Do homem ativo, só o ouvido e a lucidez continuavam os mesmos, contrariando a maioria dos que tinham chegado àquela altura da vida. No mais, apenas um ser insone e lento, aprisionado num corpo dolorido.

Mas não era hora de pensar em suas mazelas. Deixou as lamentações de lado e concentrou-se no cara jogado no banco de trás, feito um saco de lixo.

Fazia muito que trocara a noite pelo dia e nas últimas semanas, com a mania de cuidar o movimento da rua, vinha presenciando fatos estranhos.

Na segunda-feira, pouco depois da meia noite, seu vizinho foi arrancado de casa aos trambolhões, por dois brutamontes, e forçado a entrar numa viatura parada na esquina. Até agora ele não tinha voltado. E na madrugada de quarta, em uma de suas rondas pela janela, surpreendeu o baixinho que morava no térreo de um sobrado, saindo às pressas. Embarcou numa Rural com sua mãe entrevada e sumiu na serração. Sujeito esquisito, o tal baixinho. De pouca conversa, óculos fundo-de-garrafa, alguns fios de cabelo tramados sobre a careca e uma perna atrofiada pela poliomielite. Mesmo à distância, uma figura inconfundível. Na manhã seguinte o sobrado que ele vivia há anos com a mãe, e onde também funcionava, no andar de cima, uma pensão de estudantes, foi invadido e revistado.

Definitivamente, algo muito suspeito andava acontecendo na Rua do Acampamento. Mas como ele poderia saber?

Desde que as válvulas do rádio grande haviam pifado, estava afastado dos noticiários. Nada de A Voz do Brasil, Repórter Esso, nem ao menos os programas locais que transmitiam, de hora em hora, os fatos mais relevantes do dia. Tinha um radinho portátil, mas estava sem pilhas. Com a vida pela hora da morte, se comprasse as “amarelinhas” não sobraria para os remédios. E já não lia os jornais impressos. Só as manchetes. As outras letras se misturavam como formigas sobre o papel.  

Nos últimos tempos, toda a informação a que tinha acesso, chegava através de Aquiles, o único amigo que o visitava. Mas Aquiles andava confuso e já meio esclerosado, trocava os nomes, os modelos dos carros, os horários. E principalmente as vítimas dos misteriosos desaparecimentos. Fosse ele o homem de antes, teria descido, feito perguntas, se inteirado de tudo sem depender de outro velho.

Quando a rua silenciou, soltou o pano gasto da cortina e, resmungando consigo mesmo, arrastou-se pela trilha dos próprios chinelos na cera grudenta do assoalho. Tateando a cama, recostou o corpo enfraquecido pelas dores. E de olhos fixos nas manchas difusas que as luzes dos postes refletiam no teto, aguardou o próximo barulho.   

M.Cendón



foto: Marga Cendón

domingo, 1 de maio de 2016

Consuelo

Um pássaro de isopor tremulava preso a um fio de nylon no teto da varanda. Sobre o muro, uma flor de plástico num vaso de barro. Os adornos tinham sido colocados ali por Isolda, a diarista de confiança a quem ele dera certas liberdades. “Esta casa precisa de vida, seu Aroldo”.

Aroldo deteve-se ao movimento circular do falso pássaro, depois desviou para o objeto imóvel em formato de rosa que sequer poderia ser colhido, mesmo em face do maior enlevo. Só Isolda, com sua visão curta, enxergava vida naquelas inutilidades.

Debruçou-se no parapeito do terraço, acendeu um cigarro e contemplou a cidade. O traçado disforme das ruas lembrava o tapete persa que dera à Isabel nos dez anos de casados. E foi por uma delas que andou até a praia, ao lado de Consuelo. Olharam vitrines, compraram bobagens, voltaram satisfeitos e ela preparou o jantar. No meio da noite, o perfume dela misturou-se à maresia e o arrancou do sono. Suado, boca seca, mãos tateando em busca de aconchego no pano ralo da camisola.

A voz aguda de Isolda, ao despedir-se, trouxe Aroldo de volta ao terraço. O olhar para além das luzes já acesas na Avenida Pernambuco, a brasa do cigarro a queimar os dedos, um gosto estranho, uma sede insuportável. Ainda podia sentir Consuelo por perto, embora mal a conhecesse e jamais a tivesse tocado. Seus olhos tristes sorriam para ele feito promessa. E naquele espaço de poucos metros, viu o falso pássaro e a flor de plástico repartirem com Isabel o vento de outono.


Sim. Era preciso um sopro de vida na casa.  


M.Cendón