segunda-feira, 4 de julho de 2016

Degredo

O vermelho-alaranjado na paisagem sinalizava o final daquele domingo. Afundado na poltrona, sentia-se tomado de uma espécie de tristeza mais aguda que de costume. O dia havia sido difícil. O almoço, enfadonho como sempre: conversas que iam de obras de engenharia até proezas sem graça de filhos adolescentes, passando por pias entupidas, diarreias, dor de ouvido e outros problemas domésticos. Os cunhados e suas esposas perfeitas, os sogros e sua nova casa de praia...

Ele não era engenheiro, não tinha filhos, não ia à praia, tampouco via sentido nas estrondosas risadas após as piadas sem pé nem cabeça contadas à mesa. Nenhuma afinidade os ligava. Tinha pavor daquelas reuniões familiares e da suposta normalidade que ostentavam. Só pensava em ir para casa.

Ao seu lado, distraída, Maria Lúcia folheava um jornal. Olhou-a de canto sem que ela notasse. A sobrancelha direita levemente erguida, concentrada na leitura; a pele clara, os lábios finos, o cabelo um tanto mais curto que antes. Apesar de passados vinte e oito anos e já não ter a mesma exuberância da jovem com quem se casara, ela continuava bonita. Há quanto tempo não a olhava assim? Mas se perguntassem, naquele instante, o que sentia agora por ela, ele não encontraria palavras que se encaixassem. De uns tempos para cá, vinha se fazendo a mesma pergunta. Talvez não houvesse resposta. Ou, quem sabe, a palavra que por si só definisse a mistura de refúgio, alívio e tédio, ainda não tivesse sido inventada.

De repente, Maria Lúcia ergueu os olhos e sorriu. Ele retribuiu. Tomou então a mão dela entre as suas e descansou a cabeça em seu ombro. Aos poucos, a tristeza que o perturbava no fim daquela tarde, deu lugar à mansidão. E recostado nela, viu as ruas passarem apressadas pela janela e as estações do subúrbio ficarem para trás. Logo estariam em casa.