segunda-feira, 22 de agosto de 2016

O Contorno do Abismo

Ajeitei os travesseiros e me recostei na cama de Laura. Seu perfume, ainda nos lençóis. Passei os olhos pelo quarto. Roupas enfileiradas em cabides, sapatos arrumados lado a lado, livros e outros objetos em nichos rasos, cobertos por uma fina camada de pó. Tudo como havia deixado. Porém, naquela noite, minha furtiva visita às suas coisas não foi apenas para aliviar a falta que me fazia. Eu buscava pelas cartas escritas e não enviadas, hábito que ela cultivava desde antes do casamento. Uma espécie de diário, em folhas envelopadas. E, embora a curiosidade me assaltasse, jamais indaguei-lhe sobre isso. Seus prolongados silêncios eram portas que se fechavam entre nós e me excluíam de parte da sua vida. Seus mistérios viraram minha obsessão. 

Vasculhei cada centímetro. Revirei móveis, caixas, malas e nada encontrei. Talvez Ambrósia, sua acompanhante e confidente, as tivesse levado dali. A antipatia que eu nutria por Ambrósia era tão evidente quanto a devoção de cão-de-guarda que ela dedicava à minha esposa. Seu olhar enigmático me irritava e só a aturava por extrema necessidade. A próxima revista seria em seus aposentos.

Quase amanhecia. Sentia-me exausto. Precisava de um café. No corredor, em direção à cozinha, dei com a cômoda que ela trouxera da estância do Sul, herança de família e parte do mobiliário de seu antigo quarto de solteira. Esvaziei-a. Fui batendo com o nó dos dedos em cada gaveta até escutar o ruído oco que me reacendeu a esperança. Bastou soltar a presilha de metal em uma das laterais e o fundo falso cedeu.

Não há como descrever a impressão do exato instante em que centenas de envelopes pardos, sem lacre ou destinatário, choveram sobre meus pés. Algo muito perto da ânsia que antecede os encontros.

Veio-me então sua imagem naquela tarde, em minha última visita. Ela oscilava para frente e para trás, feito um pêndulo a hipnotizar-me. O corpo descaído, os cachos avermelhados em completo desalinho, nenhuma maquiagem. Seus olhos verde-oliva me transpassavam como se eu fosse transparente. E o que buscavam, ficava muito além de mim. Mais uma vez senti o peso do descaso. Saí do sanatório às pressas, sem me despedir. Raiva, dúvida, sentimento de vingança guiaram-me de volta para casa.

Agora, ali estava ela. No chão. Traduzida por si mesma em palavras. Era o fim da espera em decifrá-la e do apêndice em que me havia transformado. Seus segredos, tão bem guardados, ao meu alcance. E não havia nada que ela ou Ambrósia pudessem fazer.

Apanhei uma delas, desdobrei e iniciei minha jornada: 

Rio Branco, 24 de fevereiro de 1978

Aqui, as tardes são úmidas, as noites abafadas, os silêncios cada vez mais longos. Abomino as conversas banais à hora da mesa, os sorrisos cordiais, a aparente tranquilidade que move nossos dias. Esse cerco de atenções me fragiliza. Os fantasmas, nos quatro cantos da casa, cobram o afeto que não dou. Longe do meu lugar, tenho morado nas janelas. E deste ponto, as montanhas me parecem azuis. Além delas, os rios que não vejo e as aves de plumagem estranha que nunca voam para cá. O reflexo do que me tornei ocupa a vidraça e só então compreendo o olhar por trás das jaulas. Não é mansidão. É desesperança. Fingir alegria? Impossível. A tristeza é um sentimento indisfarçável. 


Ergui a cabeça. No espelho da cômoda, um estranho me observava. Apesar da pouca luz no corredor, reconheci seus traços. Aquele ser opaco que me envergonhava, e do qual sempre quis me livrar, acabava de assumir a face de um inescrupuloso invasor, prestes a profanar um relicário.  

Devolvi a folha de papel ao envelope e todas as outras cartas ao fundo falso da gaveta. Intactas. E não foi um gesto de nobreza. Antes, pura covardia.

Eu poderia viver com a dúvida dos sentimentos dela, mas nunca com a certeza de seu desamor.   


M.Cendón

(foto: Marga Cendón)