sábado, 6 de dezembro de 2014

Recuerdos

No corredor do casarão, minha mãe tinha três andorinhas de porcelana azul-marinho com biquinhos dourados que pareciam voar na cor desmaiada da parede. A maior embaixo e a menor puxando o bando, dava a sensação de afastamento. Eu perguntava para onde iam se nunca chegavam, mas ninguém respondia. Um dia, irritada, minha tia falou: “guria, isso é só um enfeite, nunca irão a lugar algum”.

Pior era meu pai que tinha um viveiro de canários e exibia aos amigos. Toda manhã, bem cedinho, seus “detentos” cantavam. Ele os alimentava com gema de ovo, folhas de alface, rodelas de laranja e alpiste. Vendo a cena, eu resmungava: “de que adianta tanto cuidado se limita o espaço?”.  Enquanto ele argumentava sobre não saberem viver fora do cativeiro, minha mão coçava no ferrolho das gaiolas. Imaginava a revoada varanda afora se as abrisse só por um instante. Ante suas ameaças, minha rebeldia recuava.

Tantas vezes me senti como aqueles pássaros ou indo a lugar nenhum feito as andorinhas de porcelana da minha mãe. Sonhei com asas para o outro lado, distante da frieza imperturbável das grades; do céu de mentira no vazio acinzentado das paredes. E quem voou foi tempo. O casarão continua lá, eterno cativeiro a enfeitar a esquina; eco de ensinamentos que me serve de bagagem. Quando bate a saudade, assaltada de incertezas, me voltam os canários. Pergunto-me se aprendi a viver. Ninguém responde. De longe, irritada como sempre, a voz da minha tia: “guria, isso é coisa que se pergunte?”.  


M.Cendón

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.