quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Ninguém escapa

Muito gentil a mocinha da loja perguntou: “a senhora está procurando alguma coisa especial?” – olhei para os dois lados e para trás. Ninguém. Não tinha engano, “senhora” era comigo. Num primeiro momento pensei em sair e entrar de novo. Depois, em sair e nunca mais voltar. Pensei até em dizer uns desaforos, mas não fiz nada disso. Apenas retribuí o sorriso e, com a voz abafada, respondi: “Só estou dando uma olhadinha, se precisar eu chamo”.  Foi tudo que me ocorreu. Precisava ficar sozinha para recuperar o fôlego e engolir o que acabara de deixar por terra a visão que eu tinha de mim até então. Minhas pernas pesaram, meus braços caíram, e minha imagem encolheu-se diante do enorme espelho da loja. “Senhora”, eu?! Estabeleceu-se ali um impasse e minha identidade corria sério risco de esvair-se pelo ralo das indagações. Imediatamente trouxe à memória situações semelhantes relatadas por amigas e em duas ou três crônicas sobre o mesmo assunto que havia lido tempos atrás. Na ocasião me pareceu um descabimento. Ora, tanto drama por uma bobagem! Sempre achei que tiraria de letra quando chegasse minha vez. Não foi bem assim. Aquilo mexeu com algo para o qual eu ainda não estava preparada e ouvir dirigido a mim foi bizarro. Sai disfarçadamente sem comprar nada e fiquei andando pelas ruas para assimilar o trem que acabara de me atropelar conduzido por uma guria que sequer tinha noção do que causara. Mais tarde e já mais calma, entrei num café, chamei o garçom e, antes que ele abrisse a boca pra me chamar por aquela palavra sórdida, fui logo pedindo: “moço, por favor, um carioca duplo”. De moço ele não tinha nada. E, juro, minha vontade foi de pedir uma vodca. 


(publicado no Jornal Momento de Uruguaiana) 

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