quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Quem é você?

Fazendo umas (des)arrumações em meu atelier por conta da mudança de endereço, fui descobrindo tesouros guardados quase a sete chaves. Trabalhei lá por doze anos e juntei todo o tipo de tralha que se possa imaginar. Entre outras coisas, caixas abarrotadas de poemas escritos à mão em bloquinhos de propaganda de laboratório, tão ingênuos e derramados que lendo agora dá vontade de rir e outros, até bem bonitinhos, que pretendo organizar para quem sabe um próximo livro; textos sem pé nem cabeça escritos em momentos de raiva ou alegria; esboços e desenhos de futuras-passadas pinturas que acabaram engavetados; aquarelas de flor, passarinhos e paisagens. Um mundo feito de papel e tinta do qual eu havia esquecido. Mas isso foi só o começo. Veio depois uma revista geral pelos quatro cômodos até chegar à estante de livros presenteados por amigos ao longo dos anos e que há muito eu não tocava. O pó provocou uma série de espirros. Fiquei fanha e meio surda, mas não desisti. Comecei a folhear um por um lendo as dedicatórias, revendo de memória os rostos e lembrando com uma saudade boa a época em que estivemos ligados. De repente me deparei com o “Solte os Cachorros” da Adélia Prado e fui logo ver. Na segunda página dizia o seguinte:

“Marga!
Solte os cachorros quando alguém ousar te privar do que te cabe por direito: a felicidade!
Com carinho

Sônia.

Santa Maria, 19/05/81”

Um belo livro, uma bela dedicatória... Só havia um probleminha... Quem era Sônia? Com esse nome só conheço uma prima de outra cidade e, tenho certeza, nunca me presenteou com um livro. Mas como assim? Uma criatura que me deseja a felicidade como direito, me dá um livro da Adélia e eu apago? Coloquei-o na bolsa, fechei a porta e fui pra casa tentando encontrar um rosto que encaixasse naquele nome. Li e reli e nada! Nenhum fio me ligava à Sônia. Pensei então que o tempo é verdadeiramente uma armadilha que nos ronda. E sentindo remorso pelo esquecimento, escrevi logo abaixo das palavras dela:

Sônia querida!

Seja você quem for e esteja onde estiver, saiba que soltei os cachorros em todos que ousaram me privar deste ou de qualquer direito. E saiba que continuo fazendo isso hoje e o farei sempre que ousarem. E mesmo que jamais eu venha a lembrar do seu rosto, alguma diferença você deve ter feito na minha vida.

Com carinho

M.

06/10/14

(publicado no jornal Momento de Uruguaiana)

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