Ao
ouvir as portas de um carro batendo àquela hora da noite, andou até a janela e
arredou a cortina. Viu um Aero Willis escuro estacionado sob o poste do outro
lado da rua e três homens entrando na casa da frente. Minutos depois, saíram
arrastando um corpo, jogaram no banco traseiro e arrancaram em disparada.
Se
fosse em outros tempos, ele os teria seguido. Mas agora, a Gota o impedia de
movimentos bruscos, os joelhos travavam a cada passo mais largo, as mãos
tremelicavam. E a visão, por conta daquela catarata inoperável do olho
esquerdo, também não ajudava muito. Além do mais, já não tinha carro.
Por
ordens médicas, após o segundo derrame, fora obrigado a se desfazer do Austin
A40 Devon verde-claro, comprado de segunda mão. De tão bem cuidado, passava
fácil por zero quilômetro. Vez ou outra lhe vinham os detalhes cromados que
lustrava, todo dia, para conservar o brilho; os passeios pela Avenida Rio
Branco fazendo a volta no Largo da Ferroviária, bem devagarinho, até o filho
pegar no sono. Coisas roubadas pela idade que a memória insistia em preservar.
Do homem ativo, só o ouvido e a lucidez continuavam os mesmos, contrariando a maioria
dos que tinham chegado àquela altura da vida. No mais, apenas um ser insone e
lento, aprisionado num corpo dolorido.
Mas
não era hora de pensar em suas mazelas. Deixou as lamentações de lado e
concentrou-se no cara jogado no banco de trás, feito um saco de lixo.
Fazia
muito que trocara a noite pelo dia e nas últimas semanas, com a mania de cuidar
o movimento da rua, vinha presenciando fatos estranhos.
Na
segunda-feira, pouco depois da meia noite, seu vizinho foi arrancado de casa aos
trambolhões, por dois brutamontes, e forçado a entrar numa viatura parada na
esquina. Até agora ele não tinha voltado. E na madrugada de quarta, em uma de
suas rondas pela janela, surpreendeu o baixinho que morava no térreo de um
sobrado, saindo às pressas. Embarcou numa Rural com sua mãe entrevada e sumiu
na serração. Sujeito esquisito, o tal baixinho. De pouca conversa, óculos
fundo-de-garrafa, alguns fios de cabelo tramados sobre a careca e uma perna
atrofiada pela poliomielite. Mesmo à distância, uma figura inconfundível. Na
manhã seguinte o sobrado que ele vivia há anos com a mãe, e onde também
funcionava, no andar de cima, uma pensão de estudantes, foi invadido e
revistado.
Definitivamente,
algo muito suspeito andava acontecendo na Rua do Acampamento. Mas como ele poderia
saber?
Desde
que as válvulas do rádio grande haviam pifado, estava afastado dos noticiários.
Nada de A Voz do Brasil, Repórter Esso,
nem ao menos os programas locais que transmitiam, de hora em hora, os fatos
mais relevantes do dia. Tinha um radinho portátil, mas estava sem pilhas. Com a
vida pela hora da morte, se comprasse as “amarelinhas” não sobraria para os
remédios. E já não lia os jornais impressos. Só as manchetes. As outras letras
se misturavam como formigas sobre o papel.
Nos
últimos tempos, toda a informação a que tinha acesso, chegava através de Aquiles, o
único amigo que o visitava. Mas Aquiles andava confuso e já meio esclerosado, trocava
os nomes, os modelos dos carros, os horários. E principalmente as vítimas dos
misteriosos desaparecimentos. Fosse ele o homem de antes, teria descido, feito
perguntas, se inteirado de tudo sem depender de outro velho.
Quando
a rua silenciou, soltou o pano gasto da cortina e, resmungando consigo mesmo, arrastou-se
pela trilha dos próprios chinelos na cera grudenta do assoalho. Tateando a cama,
recostou o corpo enfraquecido pelas dores. E de olhos fixos nas manchas difusas
que as luzes dos postes refletiam no teto, aguardou o próximo barulho.
M.Cendón
foto: Marga Cendón |
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