Há
horas Idalína está sentada na ponta do sofá, tentando tecer um pulôver com as
sobras dos novelos de outros invernos. Às vezes, os pontos se desprendem das
agulhas e sua expressão se altera, mas logo reassume a concentração. Eu a
observo de longe. Se parece comigo nos traços. Olhos puxados, nariz arrebitado,
lábios finos. Nem bonita nem feia. Por sorte, não herdou meu temperamento. É
dócil, de movimentos leves e sorriso fácil. Mesmo contrariada, aceita o que lhe
é imposto sem levantar a voz. Eu uso esses predicados dela a meu favor. Manobro
suas vontades. Nada para o seu mal, apenas para o nosso bem.
Quando
a vejo assim, em sua habitual serenidade, não consigo evitar as comparações. E
nessas horas, o passado vem e me leva de volta ao ponto mais dolorido. Ela não
sabe o que atravessei para chegar aqui.
O
quartinho dos fundos fedia a salame e fumo de rolo e, vez por outra, um rato
atravessava o piso. “Fica-te quieta, ele é menor que tu”, dizia o dono do
armazém, um velho que se deitava comigo sobre caixotes de frutas. O peso de seu
corpo e o hálito asqueroso tiravam-me o fôlego. As unhas imundas cravadas na
minha pele, tatuavam minúsculas luas novas que custavam a cicatrizar. Depois,
estendia uma sacola plástica com mantimentos e um saquinho de caramelos
coloridos. “Isso é pra ti. Amanhã tem mais”. Eu tinha doze anos. E era parte do
escambo entre ele e minha mãe. Ou isso, ou o vazio de nossos estômagos
assombrando as madrugadas.
Ela
cresceu longe das ruas e dos homens. Não conhece o barulho da fome. Sua cama
perfumada abriga sonhos do tamanho de sua inocência. Tem quase quinze anos.
Quer vitrola portátil, vestido de seda cristal, sapatos de verniz e gorgorão.
Não pede. Eu sei por que ouço conversa entre ela e as amigas que frequentam
nossa casa. Ficam folheando revistas de moda, fazendo planos.
Na
sua idade, minha mãe já havia partido. Vieram então as ruas do centro. Becos enfestados
de baratas, lixo azedo; banheiros que eu limpava em bares mal frequentados. Quando
voltava, um colchão embolorado me recebia de braços abertos. Não havia espaço
para mais nada, além de um pedaço de pão e um banho que me tirasse o cheiro de
esgoto. Luxo só me veio à cabeça muito tempo depois.
Hoje,
deito-me sobre lençóis de percal imaculadamente brancos e o futuro de Idalína
já não me tira o sono. Por minha conta, tracei seu destino. Ela nem desconfia.
Pressinto
que desta vez me falte sua maleabilidade e a ruptura entre nós seja inevitável.
Estou sem saída. Ela, sem escolha. E diante disso, me preparo para perdê-la. No
entanto, não pretendo voltar atrás em minha decisão. Nenhum rato, por menor que
seja, vai cruzar seu caminho. E a certeza de seu amparo me tranquiliza.
Agora,
devo apressar os preparativos, checar as listas, encomendar trajes à altura.
Afinal, não é uma simples festa de quinze anos, mas o dia de seu casamento com
o senhor Anízio, homem de respeito, em cujas mãos deposito sua vida.
M.Cendón
foto: Marga Cendón |
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